Em que grande aridez tem florescido essas poucas flores e frutos da m’alma... Em tudo é um milagre que, nesta terra seca do meu coração, ainda existam umas poucas flores e frutos. Dependesse de mim, tudo estaria perdido...
Muitas são as dificuldades; dentro e fora da alma sobejam impedimentos. Custa-me muito esforço regar as sementes da vida, que em noite escura, Deus, enquanto eu dormia, graciosamente, semeou em minha alma. Ele arou, afofou, e adubou com a presença do seu Espírito, a terra árida da minha alma, e nele semeou as sementes da vida. As sementes da vida são muitas e variadas, mas a terra é completamente seca e árida, e o jardineiro é fraco, solitário, doente e pouco esforçado. Custa-me crer que o Senhor intentou fazer da alma desse pobre jardineiro sem futuro, um jardim para o seu deleite.
Em noite escura e
desesperançosa, à minha alma, tal qual cidade abandonada, veio o Senhor em
passos suaves, e sem que eu acordasse ou suspeitasse, entrou pelas terras
abandonadas da m’alma e nela labutou contra o deserto que pouco a pouco, me ceifava
a vida. Cavou, afofou, adubou, cercou e semeou muitas e variadas sementes. Sementes
de árvores e de flores da vida. Sementes de justiça, sementes de humildade,
sementes de verdade, sementes de amor, sementes de alegria, sementes de
mansidão, sementes de gratidão, sementes de pureza, sementes de contentamento,
sementes de fidelidade, sementes de fervor, sementes de bondade, sementes de
paz, sementes de poesia, sementes de esperança, e sementes de fé... Tudo que
naquela terra árida e inútil faltava, ele semeou em abundancia. Mas eu ainda
não sabia disso...
Numa amanhã fria e
solitária, eis que acordei com o coração ardendo. Surpreendido pela terra
cuidada e semeada, sob a força do sol que despontava e tudo queimava, foi
tomado por um sentimento de urgência... Era preciso buscar água, regar, cuidar
e vigiar as sementes que em minha alma ameaçavam nascer. Todavia o poço era
longe, e a minha força era pouca, e eu não tinha com que tirar água, pois o
poço era fundo.
E assim, sem nenhuma
expectativa de completar a obra que me fora dada, com muita dificuldade e
canseira comecei cuidar das sementes semeadas no deserto da minha alma. Duvidava
que aquilo um dia pudesse ser um jardim florido... Transformar um deserto num
jardim, não conheço trabalho mais ingrato e dificultoso. Era preciso regar uma
a uma as sementes, e a água era tão pouca, e mais escassa ainda a minha força e
paciência. Todo esforço me parecia inútil e vão, e eu me impacientava e ficava
ansioso por qualquer coisa. Eu não via recompensa alguma naquilo. A terra do
meu coração era por demais ruim, seca e sem nutrientes, completamente imprópria
para essas coisas de jardim. Dia e noite eu só pensava em desistir... Todavia,
sem saber bem porque, continuei o trabalho de regar aquelas sementes, que
jamais floresciam.
O antigo poço, assombrado
pela incredulidade, entulhado de restos de desejos, carne apodrecida, lixo e
restos de sonhos jamais vividos, praticamente secou de todo, e o pouco da água
que ainda minava era amarga, pestilenta e impropria para o consumo e não muito
boa para regar. A fonte de onde minava a água era muito funda, de modo que
cavar outro poço estava fora das minhas possibilidades... Eu não possuía nem
forças, nem ferramentas para tanto esforço, e mesmo que possuísse, na certeza
da inutilidade daquilo tudo, teria me lançado com tão grande desânimo ao
trabalho que quando encontrasse água, se a encontrasse, as sementes já teriam morrido
na secura daquela terra ingrata, ou então, muito antes disso, teriam sido
arrancadas e comidas pelos esfaimados ratos que sempre, talvez vindo do poço
entulhado, apareciam por ali.
Menos trabalhoso
seria desobstruir o velho poço, e foi o que fiz. Lancei-me ao trabalho
imediatamente, mas logo escureceu, e a noite escura e sem estrelas caiu sobre
mim trazendo sustos e pavores, eu perdi as forças e a esperança de sozinho
concluir tão dificultoso trabalho. Numa breve oração, que jamais foi
respondida, pedi pela morte... E assim adormeci na esperança de nunca mais
acordar.
Os dias e as noites
passavam como se não passassem, e eu perdi a noção de tudo... Sob os meus pés a
terra árida, sobre a minha cabeça o sol escaldante, e isso era tudo. Largadas ao
sol inclemente as sementes clamavam por rega, quase podia ouvir o clamor delas.
Que louco teria semeado aquelas sementes ali?! Eu me perguntei. Certamente que
alguém zombava de mim. Mas quem? Eu vivia tão afundado no deserto, tão
desvalido de tudo e de todos... Não possuía amigos, nem riquezas, nem nada. Era
só eu o deserto. Eu não tinha vizinho algum, e a cidade mais próxima eu nem
sabia em que direção ficava. Mergulhado em desespero e solidão absoluta, prostrei-me,
mas não havia palavras suficientes para pronunciar uma oração... Acho que
desmaiei... quando voltei a mim, olhei aquele cenário de destruição e me
perguntei se alguém não zombava de mim. Deus meu! Quem zombava de mim, semeando
tais sementes nos desertos da minha alma? Quem brincava comigo? Que demônio zombava
de mim?
O deserto era a
minha casa e a minha natureza. Fazia já muitos anos que eu havia deixado tudo e
para lá rumara com a firme intenção de morrer. Andei para dentro daquela imensa
solidão até as minhas forças todas se esgotarem. Em noite fria e solitária,
longe de qualquer forma de vida, entrei num buraco da terra e ali fiquei
sozinho e carente de tudo. Em pouco tempo a minha pele ficou coberta de
queimaduras, e nas noites frias um espírito de morte me visitava, e me dizia
boa noite; passava comigo a noite, e na manhã seguinte, ao partir me dizia bom
dia, e sumia novamente no abismo, sempre levando um pedaço precioso da minha
vida com ele. E assim eu fui morrendo aos pedaços. Primeiro a morte em vida me
levou o amor, e eu fiquei completamente pobre de amor, sem mesmo um resto
qualquer de amor-próprio. Depois ela me levou a humildade, e eu me tornei
absurdamente arrogante, e por fim ela me levou a paz, a fé, e a esperança e a
poesia... Perdida estava a minha alma.
Não demorou até que
o meu coração ficasse condenado a ser pedra pura. Os sonhos noturnos me fugiram
todos, e os devaneios já não existiam... e o deserto se tornou a minha segunda
natureza, que pouco a pouco foi devorando a minha existência, e eu fui me
tornando parte dele, até que por fim ele com toda a sua aridez e esterilidade
se tornou a minha primeira natureza. Eu agora era o deserto. Depois que morte
me levou a humildade, e eu me tornei o rei da solidão do meu deserto. Fazia
guerra contra mim mesmo. Todos os dias, mês após mês, eu só pensava em como
morrer o mais rápido possível. A vida já não habitava em mim. E tudo em mim era
feito de morte e treva. Eu, feito em mil fragmentos de mim mesmo, tornei-me uma
multidão violenta que lutava contra eu mesmo, e eu nunca vencia. Construía
castelos na areia, depois os pisava com raiva. Eu gritava e rilhava os dentes
contra os céus e contra os mares, cuspia e pisava forte a terra. De tudo eu
zombava, a tudo eu abominava. Eu era o demônio do meu inferno particular. E foi
assim que pouco a pouco quase nada me restou de vida. A prudência, a
misericórdia, a alegria, a esperança e a fé me abandonaram.
Descuidei de mim
como jamais vi alguém se descuidar... Vivia como bicho, e bicho assustado... Meu
cabelo agora era um pelo seco e duro que se misturava à minha barba, e quem me
via, já não me reconhecia mais. E eram muitos os que morriam de medo de mim. Um
olhar meu era fonte de pavor para eles... A todos eu enxotava com meus
olhares... E as minhas palavras feriam mais que navalha... Meus olhos não
possuíam brilhos algum, e os meus ossos todos podiam ser vistos, pois eu era somente
pele e osso. Eu me alimentava dos restos mais asquerosos, e por fim, de tanto
rastejar para catá-los, desaprendi de andar com a cabeça erguida, e tornei-me
eu mesmo como um asqueroso réptil rastejante.
Não demorou até que
se espalhasse por todos os cantos daquela região que ali, no olho mais profundo
daquele deserto, vivia um demônio. Ninguém ousava se aproximar. E foi assim que
a solidão me abraçou para sempre. A morte zombava de mim. E por fim perdi o
medo dela, e por ela me apaixonei. Sonhava acordado com ela. Eu já havia
morrido tanto que já não havia quase mais nada para morrer. Acaso alguém me
visse dormindo, que eu fazia muito pouco e com grande dificuldade, diria que eu
estava morto, pois de fato estava.
Então, eis que agora,
assim, sem mais nem menos, eu acordei de manhã, e as terras secas da minha alma
tinham sido invadidas por alguém que passou a noite toda afofando aquela terra
inútil e miserável, e nela semeou tantas sementes, que eu ao acordar, tão
maravilhado fiquei que não sabia se ria ou se chorava quando vi aquilo.
Certamente que
alguém zombava de mim, o desgraçado. Olhei mais de perto e mais calmamente e
pasmei. A alma estava inteira semeada de sementes de vida. Querendo saber que
sementes eram aquelas, enfiei a mão na terra quente e estéril e arranquei uma
sementinha, era tão pequena, tão frágil, e o deserto era tão grande, tão
profundo... Entretanto, ouvi como que correndo por todo o meu ser, um som como
o som de águas correntes, e o meu coração pulsou forte. A semente me queimou a
mão. Dei um grito e lancei longe a semente. Andei de pés descalços no meio
daquelas covas de sementes, e elas sumiam no horizonte, de tão imensa que era a
plantação. Deus meu! A terra toda da minha seca alma estava semeada com
sementes de vida! Você não pode imaginar a alegria, que pela primeira vez, me
tomou o coração.
Cansado, pois me
cansava ao menor esforço, ali mesmo me deitei e dormi. Cobri-me com terra e
areia, e mergulhei no silêncio do sono. E, pasmem, tive um sonho. Ah! Você não
vai acreditar se eu contar, mas a verdade é que eu não sonhava, fazia já uns
dez anos. Naquela noite, em sonho, eu me vi em pé no meio de um maravilhoso
jardim, e a minha alma dançava de alegria. Havia fartura de tudo, flores e
árvores com muitos frutos... Súbito acordei. Olhei aquela imensidão de
sementeira que havia se tornado a minha alma, e imediatamente fiquei sabendo do
que eram aquelas sementes que me rodeavam os pés. Eram sementes de amor,
esperança e fé.
Vi que a terra ainda
estava seca e morta... Na mesma hora uma urgência dobrada de regar aquelas
sementes me tomou a alma. Com muito custo retirei um pouco de água do velho
poço e reguei algumas sementes. Mas o esforço era demasiado e a água era imprópria.
Então, rápido, sei lá de onde me veio a força necessária para tomar essa
decisão, me atribuí a obrigação de limpar o velho poço.
Mas era um poço
muito fundo. Era preciso descer e subir e eu não tinha escada. Fiz o que pude,
mas logo, pois já era tardinha, esgotado e faminto, caí no sono. Na manhã
seguinte, quando depois de caminhar mais de dois quilômetros para retomar os
trabalhos de limpeza, pois o poço ficava demasiado longe das sementes, tomei um
susto ao chagar até a boca do poço. Havia agua viva correndo nele!
Como pode ser isso?
Enquanto eu dormia alguém veio e limpou o poço. Tomei um pouco da água. Oh, meu
Deus! Não havia água melhor que aquela no mundo todo! Renovei as minhas forças
e saí a regar as sementes. Mas o poço era muito longe e logo caí derrotado pelo
cansaço. Era muito trabalho para uma só pessoa. Racionava a água, deixava de
beber para regar as sementes.
Regava semente por
semente, contando as gotas de água que despejava sobre elas. E assim os
primeiro mês passou. Eu tinha prometido para mim que não deixaria nem uma
daquelas sementes morrer. Mas nesta vida existem muitas coisas que não dependem
somente de nossos juramentos.
Certa manhã ao
chegar ao poço, caí em desespero. O poço estava seco. Não havia uma gota de
água. Desci pela corda e raspei o fundo, mas não havia nada, só havia a laje de
pedra e mais nada. Era o fim do meu jardim. Depois de um tempo que me pareceu
uma eternidade, chorei copiosamente, acho que pela primeira vez em muitos anos.
Retornei me arrastando para o meu buraco na terra, e chorei o dia todo.
Os dias passavam e o
sol inclemente abrasava e destruía tudo. O fogo queimava a superfície da terra
e o deserto tudo devorava... A morte aparecia ao alcance dos meus olhos, e
sorria. E eu só fazia chorar. Não havia mais esperanças para a minha alma... Uma
noite ouvi som de passos, e tropel de cavalos... Tive muito medo e me encolhi
no fundo da terra, e o silêncio me abraçou até o amanhecer.
Para meu horror,
enquanto eu me escondia alguém veio no meio da noite e enterrou o poço. Então desisti,
e um instante eu me conformei com a morte. Tudo havia sido só mais um sonho.
Não havia sementes nem nada. Era tudo ilusão. Alucinações do deserto. Olhei e
não vi nem sinal de sementes. Cavei a terra e nada encontrei. Certamente que
tinha caindo numa ilusão. O diabo me visitara, certamente que visitara.
Os dias e as noites
passaram, e eu continuei minha amarga vida no deserto. Até que uma noite, no
meio da madrugada, quando o sonho me havia fugido novamente, eu olhando a
imensidão estrelada do céu... De repente o ar se encheu do farfalhar de muitas
asas... Meu coração disparou. O ar se encheu de alegria e paz. Tive um pressentimento
e disse sussurrando para mim mesmo: Anjos! Anjos!
Então eu acordei de
repente, o sol já ia alto ao meio do céu, e eu ouvi o som de um pássaro feliz...
Abri os olhos e corri ao mesmo tempo. A terra estava coberta de pássaros que
bicavam as sementes. Corri no meio deles e os enxotei... De repente, bem no
meio da terra os meus pés se afundaram na areia, até a altura dos joelhos.
Areia movediça, eu pensei. Mas então, com a suavidade do pousar de uma pomba, a
água minou ao meu redor e levou a areia e eu fiquei em pé no meio de uma
pequena fonte de águas vivas. Inundado por uma alegria sem igual. Saí correndo
e pulando. A felicidade havia voltado, e agora para ficar... Corri, busquei
meus baldes e reguei abundantemente as minhas sementes. Trabalhei o dia todo, e
não sentia fome, sede ou cansaço. E no fim do dia mergulhei de corpo inteiro
naquela maravilhosa fonte...
Depois de muitos
dias uma relva fina apareceu sobre a superfície da terra, e as sementes
começaram a brotar. Mas havia o sol cada vez mais inclemente, e a água da
pequena fonte começou a escassear, e eu não dava conta de regar tudo, e havia
os pássaros que vinham ao amanhecer e ao entardecer. Sozinho eu não daria conta
de tanto cuidado.
Mas, então, para minha
surpresa, a pequena fonte, sem qualquer ajuda minha, quando eu já havia perdido
todas as minhas forças, se alargou e correu pelo meio da terra formando um
pequeno riacho que se bifurcou em dois longos braços que se esticavam levando
águas para as sementes recém-geminadas... Meu trabalho agora era enxotar os
pássaros e arrancar ervas daninha do meio das mudas, que cresciam verdejantes.
E foi assim que, depois
de muitos dias a terra inteira floriu... E no meio do jardim, bem no lugar onde
fica o coração da gente, brotou uma grande e majestosa árvore, que eu chamei de
a Árvore da Vida. E ela está sempre cheia de frutos... E agora já não se faz
mais necessário regar, pois as raízes das arvores descem fundo na terra e toda
manhã cai um chuva fininha...
Eu mudei-me para um
lugar confortável bem embaixo da Árvore da Vida. Agora todo dia, pela viração
do dia AQUELE que semeou a minha alma com essas sementes que hoje são árvores
feitas, me visita... E eu sinto que a vida recomeçou. Agora, mais do que nunca,
eu sei que nos céus da alma também existem tempestades e noites escuras... Mas que
a luz sempre surge quando a gente menos espera... E são tantas as formas que a
luz tem para iluminar a alma da gente...
VBMello
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