O salmo 23 é
sem dúvida um dos textos mais conhecidos e citados de toda a Bíblia. Eu já vi
fragmentos dele colados em portas, janelas, para-choque de caminhão, camiseta,
bonés. Já o escutei sendo recitado em reuniões de oração, pregação... E nas
redes sociais ele é campeão entre os textos mencionados do Velho Testamento. É
interessante notar que mesmo quem não é crente, e nem sabe nada de Bíblia, sabe
de cor pelo menos algum pedaço do salmo 23. Este textos, como tantos outros,pertence ao inconsciente coletivo do Ocidente. Para saber pelo menos um verso
dele, tipo: O Senhor é o meu pastor e nada me faltará, basta ter nascido no Ocidente. Para dizer a verdade, é preciso ser muito alienado, muito sem noção,
para não conhecer um texto tão famoso da literatura sagrada mundial. Sim, a
pessoa precisa ser um alienado completo para nunca ter escutado falar no salmo
23, pois este famoso salmo é como a oração do Pai Nosso... Nos momentos de dor
ele sempre é citado, assim como o Pai Nosso é orado.
Entretanto,
acho que nós, os crentes - pelo menos os crentes que eu conheço pessoalmente -,
muitas vezes se agarram a este texto de maneira um tanto quanto precipitada e
sem reflexão. Cantam-no sem a profundidade e discernimento espiritual que ele
exige para ser cantado. Penso que isso acontece, entre outras coisas, porque o
cantamos sem levar em consideração o salmo que vem antes dele, o salmo 22.
A verdade é
que na maior parte das vezes que nós cantamos e oramos o salmo 23, nós
deveríamos é estar cantando e orando o salmo 22, e isso porque as experiências
espirituais do salmo 23 jamais acontecerão antes das experiências espirituais
do salmo 22. De modo que, para chegar aos vales verdes e floridos do salmo 23,
antes é preciso passar pelo caminho de sombra e morte do salmo 22. Não existe
atalho.
Sim, penso que
somente quem tomou a sua cruz e atravessou a solidão e a escuridão inimaginável
do salmo 22, pode cantar e entender todas as alegrias do salmo 23.
O salmo 22, ao contrário do salmo 23, é o salmo da dor e da solidão extrema. Nele o salmista começa com um grito de desespero: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.
Seguindo pelo
texto encontramos um homem sofrendo as dores de um lacerante e terrível
sentimento de abandono. Ali está um homem que de dia e de noite, ora a Deus. Se
nos aproximarmos um pouco mais desse homem, se o olharmos com um pouco mais de
atenção e compaixão, ficará fácil ver que estamos diante de um homem de dores
que ora sem cessar, mas que terrivelmente não obtém resposta alguma para as
suas orações. Meu coração estremece diante da sina deste homem... Ali está
ele... Com os olhos cheios de lágrimas, orando sem cessar. Sua dor e a sua
solidão corta o nosso coração de mero expectador.
Pobre homem! Dizemos mais para consolar a nós mesmos, do que para consolá-lo. A verdade é que somente Deus poderá consolar este sofrido homem, e ele sabe disso. Ele não alimenta qualquer esperança de que alguém se levante do meio da turba acusadora e venha consolá-lo das suas dores. Não! Ele ora é na certeza de que o próprio Deus virá em seu socorro... Todavia, Deus aparentemente está demorando demais em vir socorrê-lo. E enquanto ele espera, as suas carnes estremecem sobre os seus ossos...
Pobre homem! Dizemos mais para consolar a nós mesmos, do que para consolá-lo. A verdade é que somente Deus poderá consolar este sofrido homem, e ele sabe disso. Ele não alimenta qualquer esperança de que alguém se levante do meio da turba acusadora e venha consolá-lo das suas dores. Não! Ele ora é na certeza de que o próprio Deus virá em seu socorro... Todavia, Deus aparentemente está demorando demais em vir socorrê-lo. E enquanto ele espera, as suas carnes estremecem sobre os seus ossos...
Vemos que sem
ter no que se agarrar, este homem se volta desesperado para a galeria de heróis
da fé que o precedeu. Ele busca trazer à memoria as histórias de fé das
gerações que vieram antes dele, e julga encontrar nas histórias da vida dos
seus heróis da fé, uma razão para não perder a sua própria fé.
Mas nada parece funcionar... Nada parece dar certo... O céu continua mudo às suas orações. E mesmo assim – coisa incrível, isso – mesmo sem receber resposta alguma de Deus, ele continua crendo, pois sabe que seus antepassados oraram, e foram respondidos.
Aos olhos dos
seus detratores, o seu comportamento já se aproxima da loucura, da doença, ou,
pior do que isso, do fanatismo. Não desistir numa situação assim é até falta de
educação, dizem. Para quê continuar crendo quando até mesmo Deus parece ter se
esquecido de você? Desça desta cruz! Amaldiçoa a este Deus tardo em responder,
e morre. Eles gritam. Seja racional! Seja razoável com você mesmo. Tem bom
senso. Não seja idiota, para com isso. Mas o homem está determinando a não
largar a sua cruz por nada neste mundo. Que o chamem de louco. Que o chamem de
fanático. Que o chamem de doente. Ele sabe em quem crê e não abandonará a sua
cruz. Ainda que todo mundo abandone, ele não volta atrás na sua decisão. Mas o
preço que ele paga por esta loucura é grande demais.
Sua saúde
entra em crise, seus pensamentos se confundem, e em pouco tempo a sua
autoestima está destruída, e ele não ousa nem mesmo comparar a sua vida com a
vida dos seus antepassados, e diz de si para si mesmo: Sou um verme! Sou uma
vergonha. Sou um nada! Todavia, apesar de se ver e se sentir como um verme, e
de se sentir uma vergonha, um fracasso total, um nada... Continua crendo e
orando.
E como se não
bastasse toda a dor que ele já sente e sofre – como sempre acontece em momentos
assim -, aqueles que estão ao seu derredor - seguindo pela milenar tradição dos
acusadores amigos de Jó -, vendo que ele clama a Deus continuamente e não obtém
respostas, apertam o cerco e zombam ainda mais dele, e o humilham lançando
contra ele palavras terríveis. Flechas incandescentes voam de tudo que é canto...
Ele está pisado e moído.
A turba avança
contra ele, e faz o que de pior se pode fazer com um homem que crê e luta com a
sua fé. Zombam da sua fé. Querem tirar dele a única coisa que ele ainda tem, a
sua esperança.
Caído aos pés da turba, sofrido e padecendo um sentimento de solidão absoluta, ele, como quem geme e chora, diz de si para si: “Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer”. Ainda mais uma vez ele olha para o céu e geme: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido?” E novamente a única resposta que obtém de Deus é o silêncio, um terrível silêncio...
Há dentro deste homem algo inabalável. Ele não tem respostas claras para a sua fé.
Até as maiores distâncias que seus olhos podem ver, a noite está escura, fria,
solitária e sem estrelas. O amanhã não promete ser melhor do que o hoje. E
mesmo assim, contra tudo e contra todos, inclusive contra a própria
incredulidade, ele crê e continua crendo. Rebate o coro da zombaria dizendo de
si para si, pois na falta de alguém humano que o conforte na sua dor, ele luta
consigo mesmo trazendo à memória aquilo que pode lhe dar alguma esperança de
que o amanhã, de alguma forma que ele não sabe como, será melhor do que o hoje.
A despeito da
aparência inegável de derrota, ele ainda assim olha para o céu de bronze sobre
a sua cabeça e continua crendo e orando, pois sabe que não é por uma
circunstância ou outra que ele é amado de Deus... Na verdade ele sabe que ele é
de Deus já deste o ventre da sua mãe. Ele sabe que sua fé não depende das
circunstâncias positivas da vida, pois Deus já estava com ele desde o seio da
sua mãe. E assim, este homem moído, fraco ao extremo, vagando em profunda
escuridão, a escuridão do sentimento de ter sido abandonado até pelo próprio
Deus, segue adiante orando e cantando... E obviamente sendo zombando e
desprezado por aqueles que não entendem a sua fé. Chamam-no louco. Chamam-no
fanático.
E assim o
salmo 22 prossegue até o fim. Não há salvação, não há pastos verdejantes, não
há mesa farta posta na presença dos inimigos, não há descanso para a alma, nem
o sentimento certo da presença de Deus guiando por um caminho tranquilo. Há
apenas a escuridão e a solidão... E, claro, há também uma esperança que escuridão
alguma, que violência alguma, que ataque moral algum, pode fazer morrer, a
esperança de que finalmente Deus voltará a sua face para ele. E está esperança
é tão profunda, tão entranhada no tutano dos seus ossos, que ele, mesmo em
lágrimas, e talvez em gemidos inexprimível, canta a glória e o amor do Senhor.
Virá o dia, ele sabe, e que um espirito tal de alegria descerá sobre ele, e ele
cantará louvores ao Senhor como se seu o passado de horror nem sequer tivesse
existido.
É neste
contexto que surge o salmo 23. Surge – no meu modo de entender – como um
encadeamento imediato do final do salmo 22. De repente, aquele que chorava
gritando no meio de uma escuridão absoluta: Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste? É surpreendido por uma inversão de tudo. A noite de choro
subitamente chega ao fim, e a alegria chegou junto com o amanhecer. Pela primeira vez ele sorri. Quem zombará
dele agora? Quem dirá que ele é um verme? Quem dirá que seu Deus está morto?
Eis que nasceu o dia e brilhou a aurora, eis que o Senhor surge no horizonte
vindo em busca da ovelha perdida nas trevas. E a ovelha esgotada de tanto
sofrer, recupera as forças perdidas e brada aos quatro cantos do mundo: “O
Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me
mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da
justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temo mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me
consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a
minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a
misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do
Senhor por longos dias.”
VBMello
Nenhum comentário:
Postar um comentário